É recorrente dizer-se que a Igreja Católica goza, em Portugal, de uma condição privilegiada, ao contrário das outras religiões e instituições sociais. Também é comum atribuir-se à Concordata – o tratado internacional que estabelece as relações entre a Santa Sé e o Estado português – esse alegado regime de excepção. Por essa suposta razão, há partidos e movimentos minoritários que querem rever e modificar esta situação, invocando a laicidade do Estado e princípios de justiça e equidade fiscal. Não em vão se celebram, em 2020, os duzentos anos da revolução liberal e os oitenta anos da Concordata entre o Estado Novo e a Santa Sé.

Se, em política, o que parece é, em religião, muitas vezes, acontece o contrário: Jesus Cristo não está no crucifixo, onde parece estar, mas está na Eucaristia, onde não parece estar. Algo semelhante se verifica com os alegados privilégios concordatários da Igreja em Portugal, que são negados pelos especialistas na matéria.

Em muito oportuna entrevista à revista Família Cristã (ano LXVI, nº 5, págs. 48-52), o Professor Paulo Pulido Adragão, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, esclarece algumas questões a propósito das tão badaladas, mas inexistentes, regalias da Igreja. Se a Concordata de 1940 foi a possível no contexto de uma ditadura que, não obstante a sua aparência “católica”, foi na realidade bastante laicista e até anticlerical – recorde-se, a título de exemplo, o caso do bispo do Porto – a Concordata de 2004 reconhece “o Estado democrático, não identificado com qualquer religião”, e “olha para o fenómeno religioso do ponto de vista da garantia da liberdade religiosa das pessoas e grupos”. Segundo este especialista em Direito público, que é também doutorado em Direito Canónico, “a cooperação, pressuposta a separação, é o grande princípio que se deve continuar a desenvolver”.

Importa esclarecer que a separação entre a Igreja e o Estado – princípio que, muito antes de ser constitucional, já era evangélico – não implica que essas duas realidades institucionais se oponham, ou se ignorem, até porque um Estado laico não é sinónimo de uma sociedade laica. Que o Estado português não professe nenhuma tendência artística não quer dizer, como é óbvio, que não valorize os monumentos góticos e, se for o estilo predominante na arquitectura tradicional, não lhe dê a atenção preferencial que, nesse caso, mereceria, sem que o Estado passasse, por esse motivo, a ser gótico, nem significasse, com essa preferência, que hostilizava os outros estilos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É razoável que, em Portugal, por ser um país maioritariamente católico, o dia semanal de descanso seja o domingo, dia da ressurreição de Cristo, como em Israel é o sábado e, nos países islâmicos, a sexta-feira. Claro que nos países católicos deve-se dar a judeus e muçulmanos a possibilidade de cumprirem com as suas obrigações religiosas nos dias respectivos, mas é razoável que se opte pelo domingo como dia festivo, porque é o que corresponde à religião maioritária, com a qual se identificam, segundo dados oficiais, cerca de 80% dos cidadãos nacionais. Para este efeito, não é relevante que seja menor a percentagem dos praticantes, como aliás acontece em Israel, onde, apenas uma escassa minoria de judeus professa e pratica a correspondente religião. Mas também é verdade que, se se entender que pratica uma religião quem celebra as suas efemérides, então quase todos os portugueses são cristãos praticantes, porque festejam, pelo menos, o Natal e a Páscoa.

Segundo critérios meramente sociais, seria portanto razoável que fosse dada preferência à Igreja Católica, mas a verdade é que, como afirma o Prof. Pulido Adragão, “não há privilégios ‘injustos’ em favor da Igreja Católica, na Concordata de 2004, e o regime fiscal é um bom exemplo disso: deve acentuar-se que esse regime, previsto nas normas concordatárias para as instituições da Igreja Católica, é essencialmente paralelo ao contemplado na lei da Liberdade Religiosa de 2001, para as outras confissões religiosas inscritas como tal, junto do Estado, em Portugal.

Precisamente, porque “não há privilégios, não há excepções, não há tratamentos de favor”, “quanto ao pagamento de impostos, as instituições canónicas em Portugal hão de pagar aquilo que devem, nos termos do regime já aludido”. É justo que o Estado privilegie as instituições privadas de solidariedade social (IPSS), na medida em que realizam uma função que subsidiariamente lhe compete, mas a verdade é que, também neste sector, não foi concedido qualquer benefício à Igreja: “As IPSS da Igreja Católica, muito numerosas, entre as quais se contam as Misericórdias, gozam do mesmo regime que as outras IPSS, nos termos da Concordata de 2004. O regime especial para todas as IPSS, católicas ou não, deverá ser melhorado e depende do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, assinado em 1996, e não da Concordata”. Segundo este jurista, “o Estado deverá apoiar mais estas entidades, dada a sua relevância no sector da assistência social, por exemplo no âmbito dos cuidados continuados de saúde; a necessidade deste apoio foi acentuada no contexto da actual pandemia da Covid-19.

Outro âmbito geralmente citado, como exemplo de um hipotético favorecimento dado à Igreja pelo Estado, é o do ensino, em que cada vez mais é manifesta a imposição de um modelo estatal, profundamente ideológico e anticristão, contrário aos princípios de liberdade consagrados na lei fundamental. Também nesta matéria, Pulido Adragão considera que não há nenhum privilégio: “Em matéria de educação moral e religiosa, não há, hoje, qualquer favorecimento à Igreja Católica. Todas as confissões religiosas, desde que inscritas no registo público para esse efeito, podem requerer que lhes seja permitido ministrar ensino religioso nas escolas públicas do ensino básico e do ensino secundário.

Por último, a presença da Igreja Católica em celebrações públicas, não só não está proibida, como não pode ser entendida como discriminatória em relação às outras confissões religiosas. “Sem prejuízo do respeito pela liberdade religiosa das pessoas e dos grupos, a religião está no coração da cultura; isto é assim em todos os países; em Portugal, isto nota-se mais com a Igreja Católica, por ser a confissão maioritária. Por isso, sim, a Igreja Católica deve ser autorizada a estar, inclusive para celebrações religiosas ou outras iniciativas, em escolas e espaços públicos. O mesmo deverá acontecer com as outras confissões religiosas, nas mesmas circunstâncias. O Estado é laico, mas o espaço público é o espaço de todos, pessoas e grupos.

Liberdade religiosa e laicidade sim, sempre. Laicismo não, nunca.