Por Thaiza Pauluze, GloboNews — São Paulo


Brasil registra três queixas de intolerância religiosa por dia

Brasil registra três queixas de intolerância religiosa por dia

Andar até o ponto de ônibus de roupas brancas e colar de contas, a chamada guia, foi o suficiente para a enfermeira Carolina Viegas, 35, ser atingida por uma lata de refrigerante, jogada de dentro de um carro, seguido por gritos de "macumbeira" e "isso é coisa do diabo".

"Eu fiquei desnorteada. A partir desse dia, foi tirada de mim a liberdade de viver. Eu não podia mais ir a pé, né? Passei a só andar de táxi, com medo, durante o preceito [semanas em que precisa de vestimentas específicas]", conta ela.

Casos como o de Carolina, que já passou pela umbanda e hoje é do candomblé, se repetem ao menos três vezes por dia no Brasil. Só neste ano, o país teve 545 denúncias de intolerância religiosa.

Este é o número de queixas recebidas entre janeiro e junho apenas no Disque 100, serviço para denunciar violações de direitos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, segundo levantamento feito pela GloboNews.

O estado com mais registros é São Paulo, com 111 denúncias, seguido do Rio de Janeiro, com 97, Minas Gerais (51), Bahia (39), Rio Grande do Sul (26), Ceará (11) e Pernambuco (13).

No ano passado, no mesmo período, foram 466 denúncias. Ou seja, 2022 registrou um aumento de 17%. No primeiro semestre de 2020, foram 498 queixas -- um aumento agora de 9,4%.

Em todo o ano de 2021, foram 1.017 denúncias, e os estados que lideraram o ranking eram os mesmos.

O Disque 100 é um serviço de disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos, como crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, população LGBT, população em situação de rua, entre outros.

O canal do governo federal recebe, analisa e encaminha as queixas para o órgão responsável pela investigação, proteção ou responsabilização.

O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, bastando discar 100.

O serviço é considerado um “pronto socorro” dos direitos humanos e atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante.

Qualquer pessoa pode reportar alguma notícia de fato relacionada a violações de direitos humanos, da qual seja vítima ou tenha conhecimento.

A enfermeira não denunciou por esse canal quando foi vítima. Também não era a primeira vez. Quando estava na faculdade, precisou raspar os cabelos em um ritual de iniciação do candomblé, e passou a ver colegas se afastarem na sala e no refeitório. "Eu ouvia comentários tipo: 'Essa menina é do diabo, mexe com coisa ruim'", conta ela.

Na residência médica, após se formar enfermeira, também via os colegas do hospital evitarem fazer plantão junto a ela ou ensinarem os procedimentos. "Diversas pessoas têm esse tipo de preconceito, independente de classe social ou nível de estudo", diz.

Mesmo com tantos episódios de preconceito, ela continua saindo com as vestes do candomblé. "É a representação de quem nós somos. Nossa identidade. Essa indumentária é parte da minha ancestralidade que eu estou respeitando. Mas hoje, em meio a tanto ego e vaidade, estão distorcendo a palavra de Deus, de Oxalá, seja quem for. A mensagem das religiões deveria ser de amor, de paz. Mas alguns querem ser o dono da verdade, como se fosse o detentor de todo o saber, então é por isso que existe a intolerância religiosa. Mas somos todos iguais e irmãos.

Denúncias de intolerância religiosa pelo Disque 100 entre janeiro e junho

  • 2020 - 498
  • 2021 - 466
  • 2022 - 545

Estados com mais casos em 2022

  • SP - 111
  • RJ - 97
  • MG - 51
  • BA - 39
  • RS - 26
  • CE - 11
  • PE - 13

Religiões de matriz africana e intolerância

As religiões de matriz africana, como umbanda e o candomblé, são as que mais sofreram preconceito por intolerância religiosa em 2022 no estado de São Paulo, de acordo com dados da Secretaria da Justiça e Cidadania do estado coletados a partir dos registros de denúncias feitas à Ouvidoria da pasta.

O levantamento também mostra que o número de denúncias é bem superior ao registrado em 2019. Naquele ano, a secretaria recebeu apenas 17 denúncias por intolerância religiosa. Em 2022, só no primeiro semestre, foram 110, um aumento de 547%.

Nos últimos anos, esse canal tem ficado mais conhecido, o que pode ter feito o número de denúncias saltar. Em 2021, foram 210 denúncias recebidas pela pasta por intolerância religiosa.

O ano com mais reclamações até agora foi 2020, com 245 queixas do tipo.

Reclamações por ano

  • 2019 - 17    
  • 2020 - 245 - Um aumento de 1341% em relação a 2019
  • 2021 - 210 - Queda de 21% em relação a 2020, mas aumento de 1.135% em relação a 2019
  • 2022 -110 - Em um semestre, 52% dos casos registrados em 2021 e 547% superior ao registro total de 2019

A partir do segundo semestre de 2021, a Ouvidoria da Secretaria da Justiça passou a elencar as denúncias conforme a denominação religiosa.

Em cerca de um ano, as religiões de matriz africana estiveram no topo do ranking de denúncias de intolerância religiosa, com 57 registros no 2º semestre de 2021 e 44 denúncias no 1º semestre de 2022.

Em segundo lugar está o preconceito contra evangélicos, respectivamente 6 registros e 12 denúncias no mesmo período.

Ranking de denúncias por religião entre 2021 e 2022

Religião      Denúncias no 2º semestre de 2021 Denúncias no 1º semestre de 2022
Matriz africana 57 44
Evangélica 6 12
Católica 6 7
Judaísmo 1 3
Islamismo 1 3
Bruxaria 3 0
Outros 0 37

Punição administrativa

A Lei Estadual nº 17.346/2021, sobre a liberdade religiosa no estado de São Paulo, pune administrativamente as pessoas que cometem atos de intolerância religiosa. A Secretaria da Justiça, por meio da ouvidoria, recebe as denúncias, realiza a investigação e processa administrativamente o denunciado. Se condenado, o infrator pode pagar multa de até R$ 95 mil.

As denúncias podem ser feitas por meio do site da secretaria.

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