Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Defender o Estado laico é a salvação do Brasil

Não haverá liberdade política enquanto não houver um Estado que trate todos com dignidade e que respeite o direito à fé e à não-fé

Jair Bolsonaro e Padre Kelmon. Foto: Caio Guatelli/AFP
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Acabamos de passar por um dos processos eleitorais mais importantes das últimas décadas. E como em 2018, o segmento evangélico foi protagonista deste pleito. O candidato à reeleição para a Presidência da República Jair Bolsonaro e parte das lideranças evangélicas usaram toda estrutura de comunicação e de capacidade de mobilização de suas igrejas para ganhar os votos dos fiéis. Sabemos que houve adesão de boa parte dos evangélicos e evangélicas à campanha de Bolsonaro. Sabemos, também, que Lula teve uma votação expressiva neste segmento, principalmente entre os mais pobres.

As mentiras e distorções das pautas morais, como a defesa da religião e da família, invadiram as mídias sociais de pessoas das igrejas com a velha tática do pânico moral, espalhando a fake news de que Lula fecharia igrejas, perseguiria os cristãos e criaria banheiros unissex, onde seus filhos e filhas estariam expostos a violências sexuais. Ainda, houve a defesa de que Bolsonaro governaria o Brasil com ideais cristãos e que seria um enviado de Deus, uma vez que Lula seria um perigo para os evangélicos.

Pois bem, mesmo com isto, com a máquina do Estado brasileiro em mãos, com a tropa de pastores como Valdemiro Santiago, Silas Malafaia e Magno Malta e com o reforço da primeir-adama Michelle Bolsonaro, que desempenhou um papel importante na atração dos votos das mulheres evangélicas, Bolsonaro perdeu.

Porém, temos um grande desafio pela frente, para defender a nossa jovem e frágil democracia: a liberdade de consciência de boa parte das pessoas evangélicas foi desrespeitada e isso é um ultraje no Estado Democrático de Direito. Um grande número de relatos de evangélicas e evangélicos expõe que votaram em Lula e que não declararam seus votos. Ora, o medo de serem expulsos de suas comunidades de fé, de perderem prestígio e acolhimento, fez com que as pessoas que não votaram em Bolsonaro não se sentissem confortáveis em discordar de seus pastores e da maioria de suas comunidades de fé, e isso é muito grave.

Se o segmento evangélico é hoje quase 30% da população brasileira e há a projeção de que em breve seja a maioria da população religiosa do País, se parte desses fiéis não se sentem à vontade para declarar seus votos e defender seus ideais, sob pena de serem violentados em suas comunidades de fé, temos um risco para nossa democracia. Precisamos cuidar disso, e não podemos esperar 2026 para pensar formas de garantir que toda pessoa, religiosa ou não, possa ter sua liberdade de consciência respeitada!

A fala do presidente eleito Lula sobre governar para todas as pessoas é passo essencial para o respeito à diversidade de posicionamentos políticos, mas não é suficiente. Temos um desafio enorme, nada fácil e urgente, de superar essa polarização e garantir que as pessoas possam livremente manifestar seus pensamentos e posturas.

O aparelhamento da fé como instrumento de ganho de poder político e social não é criação de Bolsonaro. O Brasil está acostumado a vivenciar governos que usaram a gramática da tríade “família, Deus e pátria” para conseguir fortalecer posturas antidemocráticas. Foi assim no golpe dado por Vargas em 1935, uma vez que a sua luta “contra o comunismo” também se amparava na defesa da família. Foi assim em 1964, com a Marcha da Família com Deus, e tem sido assim desde 2018.

Portanto, o povo está acostumado a esse conteúdo político, mas a grande novidade é a forma com que esse discurso tem circulado na sociedade: as redes sociais digitais. O modo desvairado de espalhar notícias e instaurar pânico tem nos assustado, mas não podemos esquecer que nos últimos 100 anos, no Brasil, movimentos antidemocráticos usaram do discurso moralista cristão para conseguir apoio moral e político das bases populares.

Eu me solidarizo com os mais de 12 milhões de evangélicos que votaram em Lula, dos quais muitos não declararam votos – e quando declararam foram perseguidos em suas igrejas por pessoas com quem dividiram uma caminhada de fé e de vida. Ver irmãos se levantando contra irmãos dentro da igreja foi um dos processos mais difíceis desta eleição, e não devemos nos iludir que isso passará rapidamente.

Para que superemos este episódio de perseguição dentro dos espaços religiosos é urgente que defendamos o Estado laico! Não há outra saída: é o Estado laico que garante a liberdade religiosa e que o Estado não se paute por uma religião, ou que muito menos persiga.

Um país historicamente marcado por uma colonização cristã e pela perseguição às religiões e espiritualidades indígenas e africanas tem que se efetivar laico. Política e religião no Brasil têm uma longa relação, desde que a cruz foi enterrada em Porto Seguro. A nossa gramática política é a do patriarcado cristão.

Logo, não haverá liberdade política para as pessoas enquanto não houver um Estado que trate todas as pessoas com dignidade. Um Estado que respeite o direito à fé e também à não-fé. Que se ocupe das matérias da habitação, do trabalho, da educação, da saúde, dentre outros direitos essenciais à dignidade humana. Matérias religiosas são de competência dos religiosos, não devem ser discutidas no Congresso Nacional, muito menos transformadas em leis.

E o fato de irmãos e irmãs na fé não poderem declarar seu voto com tranquilidade tem total relação com a laicidade do Estado. Afinal, quando a religião se torna absoluta e inquestionável, sobretudo aliada à política, divergir se torna um risco ao monopólio da religião.

O que vai nos salvar de um Brasil fundamentalista e reacionário é a defesa dos direitos humanos e a garantia de um Estado laico. A nossa jovem democracia ainda está sob risco. Vencemos a batalha, mas ainda há uma guerra contra o fundamentalismo religioso a ser vencida. Sigamos!

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