Opinião

Novas leis protegem religiões no Brasil

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2 de fevereiro de 2023, 11h11

No mês passado duas leis federais foram sancionadas abordando questões religiosas.

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A 14.523/23 passou a prever pena para o racismo religioso e a Lei 14.519/2023 instituiu o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.

A pergunta que fica é: sendo o Brasil um Estado Laico, são as referidas lei constitucionais? É o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

Da relação do Estado com a religião
Desde a antiguidade, há registros das relações entre o Estado e a Igreja, no Estado Oriental até o apogeu da Grécia antiga havia as monarquias teocráticas e os reis eram adorados como deuses e de forma similar acontecia no Estado Romano. Na idade média começaram a surgir as estruturas próprias do Poder Público e do Poder Religioso, mas havendo ainda uma interferência mútua [1].

Na idade moderna surgiu o fenômeno da estadualização das religiões, com os Estados comumente adotando religiões oficiais e criando leis religiosas. Só na Idade Contemporânea é que começou a surgir os fundamentos do Estado laico com a separação entre Estado e Igreja, mas existindo diferença de Estado para Estado [2].

Em relação especificamente ao Direito Canônico, essa denominação surgiu no século 8, mas teve como auge a promulgação do primeiro Código Canônico em 1917 [3], que teve o seguinte propósito:

"harmonizar os cânones discordantes, ou seja, elaborar um corpo de doutrina no qual fosse reduzida a uma unidade todo o sistema do direito da igreja, fossem coordenados os critérios e polidas as contradições. Essa coleção difundiu-se por toda a Europa e, em que pese o fato de ser uma obra privada, impôs-se como a única coleção de direito canônico anterior à data de sua composição, uma vez que seu prestígio relegou ao esquecimento todas as coleções precedentes" [4].

Desse modo, o chamado Direito Canônico ganhou verdadeiramente corpo no decorrer do século passado e se consolidou definitivamente com o atual Código Canônico de 1983.

Assim, concluímos que a relação entre Estado e Igreja mudou no decorrer do tempo, passando por fases na qual a Igreja e o Estado estavam estritamente ligados, até a fase mais atual na qual, como regra, existe uma separação entre Estado e Igreja. Falamos "como regra" porque ainda existem Estados que não são laicos, pois adotam religiões oficiais, não sendo esse o caso do Brasil, que previa uma religião oficial, a Católica, na Constituição do Império de 1824 [5], mas desde a Constituição de 1891, a primeira após a República, é um Estado Laico.

Estado Laico e o respeito à liberdade religiosa
O fato de um país ser um Estado laico o torna neutro no aspecto na religiosidade, porém o obriga a proteger todas as crenças [6], pois não podemos confundir laicidade com laicismo, que seria a negativa da existência de religiões [7], uma vez que a laicidade não precisa vir a ser necessariamente antirreligiosa [8].

Da mesma forma, ao mesmo tempo que não possui religião obrigatória, a Constituição Brasileira [9] prevê como Direito Fundamental o Direito de Proteção à Liberdade de Religião, o mesmo acontecendo no âmbito internacional, conforme previsão, por exemplo, no Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que expressamente prevê como forma de preservar o direito à igualdade a impossibilidade de discriminação em decorrência da religião da pessoa [10].

 Ainda no âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos [11] também reforça a necessidade de proteção à liberdade religiosa, porém, por se tratar de uma declaração e não de um tratado, ela não tem caráter normativo, podendo ser considerada uma espécie de soft law [12].

Desta feita, o Brasil deve ter normas efetivamente protegendo as religiões, bem como garantido, na medida do possível, que as pessoas possam exercer a sua fé da forma mais ampla possível.

Por outro lado, apesar de laico, a influência política da Religião Católica no Brasil ainda é muito forte até os dias atuais, o que pode ser verificado pelos inúmeros feriados religiosos fazendo referência especificamente à Igreja Católica e deixando de lado as outras religiões presentes no território brasileiro, inclusive religiões tipicamente brasileiras, como a Umbanda e o Santo Daime.

Desse modo, quando a Lei 14.519/2023 traz um reconhecimento do Candomblé e das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas, ela acaba contribuindo para que se corrija um erro histórico do nosso país de esquecer e até mesmo marginalizar várias religiões brasileiras, falha essa que acaba gerando o chamado racismo religioso, objeto de preocupação da Lei 14.523/23.

Conclusão
Ser Laico não quer dizer apenas não ter religião oficial, mas também buscar mecanismos para proteger e viabilizar o exercício de todas as religiões.

Assim, quando a Lei 14.519/2023 busca proteger religiões de matriz africanas e quando a Lei 14.523/23 traz a proteção contra o racismo religioso, o Brasil está colocando em prática justamente a laicidade do Estado, pois dizer ser um Estado Laico deve gerar algo concreto e não apenas ser  algo escrito em uma folha de papel.

Desse modo, as leis em questão são constitucionais e muito bem bem-vindas, pois podem nos ajudar na busca pela harmonia entre todos os credos.

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Referências
CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008.

DÍAZ-SALAZAR, Rafael. España Laica: Ciudadanía plural y conveniencia nacional. Madrid: Espanha, 2008.

GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012.

LOMBARDÍA, Pedro. Lições de Direito Canônico. Edições Loyola: São Paulo, 2008.

MARTIN DE AGAR, José T. Introducción Al Derecho Canónico. Madrid: Tecnos, 2002.

OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; BERTOLDI, Márcia Rodrigues. A importância do soft law na evolução do Direito Internacional. In XIX Congresso Nacional do CONPEDI, 2010, Florianopolis. Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI, 2010. [p. 6265-6289].p.6271.

 


[1] GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012. p.24.

[2] Idem, ibidem. p.25.

[3] MARTIN DE AGAR, José T. Introducción Al Derecho Canónico. Madrid: Tecnos, 2002. p.22.

[4]LOMBARDÍA, Pedro. Lições de Direito Canônico. Edições Loyola: São Paulo, 2008.p.21.

[5] "Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Artigo 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo".

[6] CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008.p.655.

[7] GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012. p.27.

[8] DÍAZ-SALAZAR, Rafael. España Laica: Ciudadanía plural y conveniencia nacional. Madrid: Espanha, 2008. p.17.

[9] Artigo 5º,VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[10] Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer opinião.

[11] Artigo 18: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

[12] OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; BERTOLDI, Márcia Rodrigues. A importância do soft law na evolução do Direito Internacional. In XIX Congresso Nacional do Conpedi, 2010, Florianopolis. Anais do XIX Congresso Nacional do Conpedi, 2010. [p. 6265-6289].p.6271.

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