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As leis 11.635/07, 14.519/23 e 14.532/23 e o combate à intolerância religiosa

Com a rigidez imposta pela lei 14.532/23, a qual equipara injúria racial ao racismo, alcançando a punição contra ataques à liberdade religiosa, espera-se ao menos que as pessoas procurem mais informações sobre aquilo que desconhecem.

terça-feira, 21 de março de 2023

Atualizado em 26 de setembro de 2023 13:13

Em 6 de janeiro de 2023, foi sancionada a lei 14.519 instituindo o Dia Nacional das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, a ser comemorado anualmente no dia 21 de março, data marcada pelo Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. Alguns dias depois, em 11 de janeiro, foi sancionada a lei 14.532, equiparando à injúria racial quaisquer atos contra manifestações ou práticas religiosas. Ambas as leis se somam à lei 11.635, que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 21 de janeiro de 2007.

Porque três leis tiveram que ser editadas para proteger um direito, há décadas assegurado pela Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e pela Constituição Federal (1988)? 

A lei 11.635/07 relembra a morte de Gildásia dos Santos, mais conhecida como mãe Gilda de Ogum, vítima de um infarto no ano 2000, em decorrência de uma série de atos de intolerância e racismo religioso contra ela e sua fé.

As religiões de matriz africana chegaram ao Brasil junto com os povos escravizados que foram trazidos da África pelos colonizadores portugueses. A doutrinação cristã era unânime à época e durante séculos foi o proibido o culto às divindades de matriz africana no Brasil. Os adeptos tiveram que associar a imagem dos Orixás aos santos da Igreja Católica, burlando, portanto, a doutrinação cristã. Essa associação é denominada como "sincretismo religioso", sendo mais comum nos terreiros de Umbanda.

Era através da fé que os escravos africanos encontravam forças para resistir à crueldade do sistema escravagista. Assim, do encontro cultural entre os elementos das três matrizes formadoras da sociedade brasileira - índios, africanos e europeus -, surgiram as religiões afro-brasileiras.

Apesar de todos esses anos, e embora o Brasil seja um Estado laico, pelo menos do ponto de vista teórico e jurídico, os casos de intolerância e racismo religioso vêm tomando uma proporção preocupante. Apenas no primeiro semestre de 2022, o país registrou uma média de três queixas por intolerância religiosa por dia, chegando ao todo em 545 denúncias.1

As religiões de matriz africana são o alvo mais frequente daqueles que não respeitam a liberdade religiosa. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, somente em 2022 foram registrados 1.200 ataques, resultando um aumento de 45% em relação a 2020.

No Estado de São Paulo, as religiões de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé, são as que mais sofreram preconceito por intolerância religiosa em 2022, de acordo com os dados da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado. Essas ações têm sido mais comuns nos últimos 4 anos, seja por falas preconceituosas, incêndios criminosos em terreiros, além de vandalismo contra imagens.

Ainda sob o ponto de vista do preconceito e o medo de se tornar vítima dessa violência, de acordo com os dados da última pesquisa realizada pelo Censo do IBGE2 apenas 0,3% da população brasileira se declara integrante de religião de matriz africana, devido ao temor de sofrer ataques ou retaliações oriundas da intolerância religiosa.

Em que pese a intolerância religiosa seja um crime tipificado, diante da inércia do judiciário em casos denunciados, além da impunidade evidenciada, essa tipificação nunca foi o suficiente para que os intolerantes deixassem de cometer esse crime, pois a intolerância religiosa, na maioria das vezes vêm camuflada, como "opinião" e "liberdade de expressão", quase sempre sendo justificada pela "ignorância" e "mal entendido".  Ou seja, em quase todos os casos de intolerância religiosa denunciados, poucos são adequadamente punidos.

Esses atos estão cada vez mais presentes no nosso cotidiano, tendo ocorrido recentemente em rede nacional, durante a exibição do maior reality show do país, o Big Brother Brasil. Na ocasião, 3 participantes declararam sentir "medo" de um outro participante devido à sua religião. O participante ofendido é adepto ao IFÁ, culto tradicional Iorubá.

O fato de ter ocorrido explicitamente um ato de intolerância religiosa em rede nacional, escancara a realidade brasileira no que diz respeito às religiões de matriz africana. Em uma recente pesquisa coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras em 2022, foram ouvidos 255 terreiros do país inteiro. Cerca de 78% dos entrevistados relataram que indivíduos de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência motivada por racismo religioso, e quase a metade dos entrevistados registrou até cinco ataques nos últimos dois anos.

Ainda que a intolerância religiosa não seja um problema social exclusivo dos brasileiros, é certo que o Brasil é um país rico de identidades culturais, logo, o papel do Estado é assegurar que todos os cidadãos possam expressar publicamente a sua fé, sem medo de sofrer ataques de qualquer natureza.

O caminho para combater a demonização de religiões de matriz africana ainda é bastante complexo, e infelizmente, o Estado como um todo, ainda não se atentou para essa progressiva e grave violência. Ainda há muita omissão e brandura nas penas imputadas, o que resulta no crescimento de casos de intolerância religiosa, principalmente contra os adeptos às religiões de matriz africana.

Com a rigidez imposta pela lei 14.532/23, a qual equipara injúria racial ao racismo, alcançando a punição contra ataques à liberdade religiosa, espera-se ao menos que as pessoas procurem mais informações sobre aquilo que desconhecem, pois é certo que a informação sempre será uma das principais ferramentas para conscientizar as pessoas, logo, o esclarecimento das questões envolvidas em casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana é fundamental para as pessoas se comportem de maneira diversa ao que ocorre atualmente.

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1 https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/disque100

2 https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/23/22107

Eduardo Szazi

Eduardo Szazi

Doutor em Direito Internacional, Vice-Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/PR e sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

Jéssica Caroline Tragancin Ribeiro

Jéssica Caroline Tragancin Ribeiro

Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados e pós-graduanda em Master of Laws (LL.M) em direito civil e processual civil pela Fundação Getúlio Vargas - FGV.

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