Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Nunca foi tão urgente enfrentar a intolerância religiosa

Historicamente, a intolerância religiosa no país remonta ao exclusivismo católico no Brasil Colônia, sob a ideologia da superioridade europeia

Foto: Amanda Oliveira/GOVBA
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Recorrentes casos de incêndios e destruição de terreiros de candomblé e de umbanda e de monumentos relacionados a estas religiões. Frequentes episódios de discriminação e ataques contra a integridade de pessoas afrorreligiosas vestidas com símbolos sagrados. Significativo número de capelas e igrejas cristãs católicas pichadas, com imagens sagradas destruídas. Diversas situações de ofensa e violência física a mulheres muçulmanas. Periódica desqualificação pública de evangélicos como pessoas esquisitas, alienadas, ignorantes, vigaristas e charlatãs. Diversas formas de agressão contra judeus e sinagogas. Certo índice de assédios e afrontas contra ateus e contra pessoas que não confessam uma religião.

Sim, estamos falando do Brasil, na segunda década do século 21, e de práticas intensificadas neste período, identificadas como “intolerância religiosa”. Entre as muitas formas de indisposição ao outro, ao diferente, da falta de capacidade ou de vontade de coexistir, de reconhecer e de respeitar as diferenças, está a intolerância religiosa. Ela se concretiza em preconceito, discriminação, segregação, ódio, violência nas mais diferentes expressões, contra vinculações, práticas e expressões religiosas e de fé e do direito de não se ter uma crença.

A intolerância religiosa pode ser praticada por religiões dominantes frente a outras expressões religiosas e de não-religião, e entre religiosos contra diferentes formas de interpretar e viver a fé dentro de uma mesma religião.

Historicamente, a intolerância religiosa no país remonta ao exclusivismo católico no Brasil Colônia, sob a ideologia da superioridade europeia. Durante o século 20, o Brasil viveu aberturas graduais à liberdade religiosa: mais facilmente em relação aos cristãos evangélicos e a religiões trazidas por imigrantes (como as orientais, por exemplo), porém, mais tardiamente com os grupos afrorreligiosos e de raízes indígenas.

Entretanto, a defesa da liberdade religiosa e o enfrentamento do racismo e da xenofobia tornou nítida a pluralidade religiosa nestas terras. O Brasil é um país plural do ponto de vista religioso. Esta noção, antes negada pela construção da imagem do país católico, vem sendo construída lentamente, a partir da segunda metade do século 20. As bases estão na defesa do direito à liberdade de crença e não crença, contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18) e na Constituição Cidadã, de 1988 (artigo 5º).

Estes princípios foram fundamentais para alimentarem políticas públicas para garantia deste direito no Brasil, como o Disque 100 (serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos, que funciona 24 horas, todos os dias da semana). Também, a instituição do Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro (data escolhida em homenagem à Iyalorixá Mãe Gilda, morta em 1999, vítima de intolerância religiosa no final de 1999, e em referência ao Dia Mundial da Religião).

Relatórios apresentados pelo Estado brasileiro e por instituições como a Unesco, nos últimos 20 anos, reafirmam que a população afrorreligiosa é a mais vitimada. Um grupo de pesquisadores defende o termo “racismo religioso”, diante do que foi estruturado cultural e ideologicamente a partir da colonização, alimentador da intolerância.

No entanto, a situação se agravou na última década, com a insurgência de movimentos de extrema-direita política que conseguiram eleger o presidente da República em 2018.

O Brasil passou a experimentar o avanço dos fundamentalismos político-religiosos (de católicos e evangélicos e de outras religiões) que representam o uso da matriz religiosa para a defesa de pautas anti-direitos das minorias sociais, como mulheres, LGBTI+, comunidades tradicionais (negras e indígenas).

Emergiram grupos religiosos e inter-religiosos (cristãos, espíritas, judeus, islâmicos, de espiritualidades da floresta) que se revestem características passionais em alto grau, de fanatismo, de idolatria de personagens-líderes, e adquirem caráter de seita, com base em uma matriz religiosa ancorada na “luta contra inimigos da fé, da família, da Pátria”. Estes grupos usam o discurso da “liberdade religiosa” justamente para atuar pelo contrário, para agir livremente contra a pluralidade de ideias e de religiões e impor uma única forma de crer e de viver a fé.

A instrumentalização política da religião para alimentar práticas extremistas, ancoradas na imposição de uma única visão de mundo, no ódio, na exclusão, na eliminação do Outro, do Diferente, está provocando cada vez mais intolerância. Estas práticas, em si, já reproduzem, com agravantes, séculos de história do Brasil de violência contra religiões. Por outro lado, instigam intolerância em pessoas que desejam ver a justiça fluir para todos. Apesar delas se oporem a tal instrumentalização, acabam assumindo atitudes de rejeição e discriminação a expressões religiosas legítimas, que são, afinal de contas, um direito humano.

Nunca foi tão urgente enfrentar a intolerância religiosa, afinal, o quadro é grave, como descrito aqui. Porém, o momento, como declarado por lideranças de diversas frentes sociais, é de pacificação e de reconstrução da democracia, com base na pauta de direitos. Ficam como desafios para o Estado e para cada uma de nós:

  • atuar para se garantir o direito de cada grupo religioso, qualquer que seja, existir e viver sua fé e para o direito de não se ter uma religião;
  • denunciar e contrapor a instrumentalização política oportunista das religiões que nega o direito e engana com discursos que distorcem a noção da liberdade;
  • educar em todos os espaços (incluindo os ocupados por agentes públicos) para a valorização da pluralidade religiosa e para o reconhecimento e o respeito às diferenças;
  • desafiar lideranças, nos mais diversos níveis, a uma compreensão e à sensibilidade quanto ao lugar das expressões religiosas na vida das pessoas, como elemento que atribui sentido e estimula ações e vivências.

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